4 de mai. de 2008

O sertanejo

O sertanejo é, antes de tudo, um forte.Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.

A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.

É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente acurvada, num manifestar de displicência, que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo -- cai, é o termo -- de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.

É o homem permanentemente fatigado.

Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene em tudo: na palavra demorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à mobilidade e à quietude.

Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.

Nada é mais surpreendente do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu achamboado, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento inesperado de força e agilidade extraordinárias.

Este contraste impõe-se à mais leve observação. Revela-se a todo o momento, em todos os pormenores da vida sertaneja -- caracterizado sempre pela intercadência impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas.

É impossível idear-se cavaleiro mais descuidado e deselegante; sem posição, pernas coladas no bojo da montada, tronco pendido para a frente e oscilando à feição da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Nesta posição indolente, acompanhando morosamente, a passo, pelas chapadas, o passo tardo das boiadas, o vaqueiro preguiçoso quase transforma o campeão que cavalga na rede amolecedora em que atravessa dois terços da existência.

Mas se uma rês "alevantada" envereda, esquiva, adiante pela caatinga "garranchenta", ou se uma ponta de gado, ao longe, se tresmalha, ei-lo em momentos transformado, cravando os acicates de rosetas largas nas ilhargas da montaria, e partindo como um dardo, atufando-se velozmente nos dédalos inextricáveis das juremas.

Vimo-lo neste steeple-chase bárbaro.

Não há contê-lo, então, no ímpeto. Que se lhe antolhem quebradas, acervos de pedras, coivaras, moitas de espinhos ou barrancas de ribeirões, nada lhe impede encalçar o garrote desgarrado, porque "por onde passa o boi, passa o vaqueiro com o seu cavalo..."

Colado ao dorso deste, confundindo-se com ele, graças à pressão dos jarretes firmes, realiza a criação bizarra de um centauro bronco: emergindo inopinadamente nas clareiras; mergulhando, adiante, nas macegas altas: saltando valos e ipueiras; vingando cômoros alçados; rompendo célere pelos espinheiros mordentes; precipitando-se a toda brida, no largo dos tabuleiros...

A sua compleição robusta ostenta-se nesta ocasião, em toda a plenitude. Como que é o cavaleiro robusto que empresta vigor ao cavalo pequenino e frágil, sustendo-o nas rédeas improvisadas de caroá, suspendendo-o nas esporas, arrojando-o na carreira - estribando curto, pernas encolhidas, joelhos fincados para a frente, torso colado no arção - "escanchado no rastro" do novilho, esquivo: aqui curvando-se agilíssimo, sob uma galhada, que lhe roça quase pela sela; além desmontando de repente, como um acrobata, agarrado às crinas do animal, para fugir ao embate de um tronco percebido no último momento, e galgando, logo depois, num pulo, o selim; - e galopando sempre, através de todos os obstáculos, sopesando à destra, sem a perder nunca, sem a deixar no emaranhado dos cipoais, a longa aguilhada de ponta de ferro encastoado em couro, que por si só constituiria, noutras mãos, sérios obstáculos à travessia...

Mas, terminada a refrega, restituída ao rebanho a rês dominada, ei-lo, de novo caído sobre o lombilho retovado, outra vez desgracioso e indolente, oscilando à feição da andadura lenta, com a aparência triste de um inválido esmorecido. (p. 118 - 121)